Um encontro atemporal – Parte II

Como prometido a continuação, perdoem qualquer erro, é por falta de revisão.

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“Passamos 2 semanas arquitetando um plano para roubar o museu nacional. Não seria nada fácil afinal eram 1500 anos de segurança melhorada. A surpresa veio quando descobrimos que a segurança era mínima, provavelmente porque naquele futuro os furtos e a pobreza eram algo quase inexistente, quase me dava vontade de entender como eles fizeram para poder levar de volta ao passado uma vez que estejamos em nosso tempo.”

-Diário mental dos irmãos Hope


– Certo, acho que já estamos preparados. Vamos repassar a lista pela última vez. – o Hope mais velho abriu a lista em seu celular e foi falando em voz algo, dando cliques nos itens a medida que eram confirmados.

“lanterna, cabo inteligente extensor, evapora vidro e bomba-flash…” – o Hope mais novo confirmou item após item e ambos fechadas suas mochilas saco-sem-fundo, que era igual uma carteira mas que se alargava por dentro sem aumentar o tamanho por fora. Algo muito útil no futuro já que se carregava muita coisa.

– Vamos nessa. – ambos colocaram suas carteiras no bolso e saíram vestindo blusas de frio com capuzes pretas, discreto apesar de um pouco antiquado. O museu era mais ao centro da cidade e eles usaram as tubulações de ar para se movimentar. Esses tubos eram enormes tubos subterrâneos como esgotos só que limpos e claros onde as pessoas se transportavam sendo levadas em cápsulas enquanto uma corrente de ar passava por toda a cidade, todo o circuito era inteligente e automático, bastava escolher a destinação.

O museu nacional era muito antigo, era desenhado no estilo no Partheon grego, todo branco, alto e com enormes colunas na entrada. Sua fachada era talhada de imagens de batalhas e monstros sendo derrotados por heróis milenários. Na porta dois guardas vestindo seus capacetes digitais e carregando armas de choque leve, apenas para atordoamento, evitava-se a morte de inocentes a qualquer custo desde que fora criado o centro de reabilitação permanente 1000 anos atrás. Não havia câmeras nem grades então foi fácil para os dois irmãos pularem a cerquinha decorativa que separava a rua dos jardins do museu.

-Vem. Certo, nos três jogamos os cabos. 1… 2… 3… – os dois apertaram o botão de algo que parecia uma caneta e fios se lançaram da ponta pregando na parede. – Vamos subir até a janela.

Os dois irmãos colocaram o pé na parede e subiram devagar até a grande janela em arco que ficava na lateral do museu. Usando o “evapora vidro” fizeram um buraco grande o suficiente para passarem pela janela e entraram no museu, exatamente na sessão de artigos egípcios onde estavam em exposição sarcófagos, obeliscos, múmias e todos os tipos de coisas que se espera de uma seção egípcia.

– O relógio está no final do corredor. – o mais novo olhos no mapa holográfico que havia baixado em seu relógio e ambos foram abaixados até a porta da sessão, abriram um pouco e deram uma olhada. Tudo limpo. Saíram andando devagar, verificando cada canto para ver se não vinha ninguém atrás deles. Nada.

Ao fim do corredor uma grande porta de madeira ia do chão ao teto, parecia muito pesada. E era. Nessa seção ficavam artigos e origem desconhecida, como colares misteriosos e o relógio dourado que eles tanto procuravam. “Só mais um pouco” – falou o mais velho excitado só de pensar em poder ver seus pais novamente, já fazia muitos meses.

Finalmente quando chegaram à porta de maneira os dois a empurraram com esforço. Aos poucos a porta foi se abrindo, até que estava escancarado, com o relógio colocado bem ao meio sobe um pedestal de vidro. Parecia tão perto e ao mesmo tempo tão longe. No bolso do irmão mais novo o relógio prateado ressoou, como se o dourado o chamasse. Era um sinal, eles estavam certos.

– Vamos! – falou o mais velho entusiasmado, mas antes de conseguiram dar três passos adentro ambos perderam o chão, começaram a levitar e quando viram estavam presos dentro de uma bolha invisível.

– Mas o que é isso? – indagou o mais novo, “nadando” no ar.

– Isso é uma bolha de contenção gravitacional. – falou a voz de alguém que entrava na sala, era um dos guardas da entrada do museu.

“Vocês pensaram que poderiam entrar aqui assim tão fácil? As medidas de segurança são ocultas por espelhos refletores e não são comunicadas ao publico para que prendamos ladrõezinhos como vocês dois. E pelo que eu estou vendo nem fizeram o mínimo de sua lição de casa para serem presos em uma armadilha tão básica.

O mais velho bufou com a arrogância do guarda enquanto o mais novo parecia prestes  chorar, todas as suas esperanças terminadas em um momento de estupidez, era o fim.

– Albert, quem está aí? – outra voz rouca vinha agora do fundo do museu, acompanhada de passos.

– Não é nada doutor, só alguns ladrões.

– E o que eles queriam roubar, Albert?

– Não sei doutor, vamos ver. Ei vocês, o que vocês pretendiam roubar.

Os dois ficaram calados, o mais novo apertava o bolso com força.

– Não querem falar doutor…

– Certo, vamos dar uma olhada então – os passos ficaram mais depressa e logo a silhueta tomou a forma de um senhor idoso de barba longa e óculos redondos, ele deveria ter uns 65-66 anos de idade, usava jaleco e uma gravata muito antiquada para os tempos em que viviam.

“Ora, é espantoso, eles se parecem, não pode ser… Albert reviste-os, por favor,”

– Certo. – Albert se aproximou da bolha e abriu um menu no ar, lá ele digitou alguns comandos e todos os objetos dos Hope saíram de seus bolsos e começaram a flutuar dentro da bolha, inclusive o relógio.

“ Esse relógio, não pode ser, é o relógio de prata. Onde vocês o conseguiram?”

O mais velho continuava de cara fechada, porém, o mais novo acabou contando tudo que havia acontecido com eles e por que eles estavam ali. No fim o doutor colocou a mão no queixo  e assentiu.

“Como eu pensei, Albert, traga-os até a minha sala…”

– Tem certeza senhor? São ladrões!

– Não se preocupe Albert, eles não são ladrões…

Continua…

Venha ver o pôr do sol

Esse conto foi um dos primeiros que eu li, é de Lygia Fagundes Telles e é um dos meus favoritos e acho que a maioria de vocês irá gostar também.

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ELA SUBIU sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.

Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante.

– Minha querida Raquel.

Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.

– Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do taxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima

Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.

– Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância…Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete-léguas, lembra?

– Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui? – perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. – Hem?!

– Ah, Raquel… – e ele tomou-a pelo braço rindo.

– Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado…Juro que eu tinha que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então fiz mal?

– Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso aí? Um cemitério?

Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.

– Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. – Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o programa?

Brandamente ele a tomou pela cintura.

– Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo.

Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.

– Ver o pôr do sol!…Ah, meu Deus…Fabuloso, fabuloso!…Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério…

Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.

– Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura…

– E você acha que eu iria?

– Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada…- disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento –Você fez bem em vir.

– Quer dizer que o programa… E não podíamos tomar alguma coisa num bar?

– Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.

– Mas eu pago.

– Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.

Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.

– Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.

– Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.

– É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.

– Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo…

O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.

– É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega.

– Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.

– Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.

Delicadamente ele beijou-lhe a mão.

– Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.

– É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.

– Ele é tão rico assim?

– Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro…

Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.

– Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?

Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.

– Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã…Mas, apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como agüentei tanto, imagine um ano.

– É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem?

– Nenhum – respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: – A minha querida esposa, eternas saudades – leu em voz baixa. Fez um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco essa eternidade.

Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.

Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas…Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.

Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.

– Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe um rápido beijo na face. – Chega Ricardo, quero ir embora.

– Mais alguns passos…

– Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para atrás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.

– A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: – Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.

– Sua prima também?

– Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos…Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas…Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.

– Vocês se amaram?

– Ela me amou. Foi a única criatura que…- Fez um gesto. – Enfim não tem importância.

Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o

– Eu gostei de você, Ricardo.

– E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?

Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.

– Esfriou, não? Vamos embora.

– Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.

Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombro do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.

Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.

– Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?

Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico.

– Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo?

– Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.

Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.

– E lá embaixo?

– Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó- murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa?

Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.

– Todas estas gavetas estão cheias?

– Cheias?…- Sorriu.- Só as que tem o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta.

Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.

– Vamos, Ricardo, vamos.

– Você está com medo?

– Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!

Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado:

– A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer… Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo-a se exibir, estou bonita? Estou bonita?…- Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente.- Não, não é que fosse bonita, mas os olhos…Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.

Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.

– Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando…

Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.

– Pegue, dá para ver muito bem…- Afastou-se para o lado.- Repare nos olhos.

– Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça…- Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.- Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida…- Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti…

Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.

– Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu?

Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.

– Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!

– Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo.

Ela sacudia a portinhola.

– Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente!- Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. – Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra…

Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.

– Boa noite, Raquel.

– Chega, Ricardo! Você vai me pagar!… – gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo.- Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos!- exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.

– Não, não…

Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.

– Boa noite, meu anjo.

Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.

– Não…

Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:

– NÃO!

Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.

Um encontro atemporal – Parte I

“O sol forte brilhava no meio do céu sobre nossas cabeças enquanto caminhávamos pela rua cheia naquele que era conhecido como o “bairro da muamba”, por que ali pra onde você olhasse tinha alguma banquinha de venda.  Nesse dia eu e meu irmão procurávamos por uma peça de computador que tinha estragado, andamos de loja em loja sem sorte até que algo me chamou a atenção: um relógio. Penso agora que nunca deveria ter pego naquele relógio maldito, porque agora estou preso 1500 anos no futuro e não sei como voltar.”

-Diário mental dos irmãos Hope.

 

– Já faz três meses e ainda não sabemos como viemos parar aqui, e agora? – O Hope mais velho andava de um lado para o outro olhando para o irmão mais novo. Os dois tinham olheiras e pareciam abatidos. Não é pra menos, estavam perdidos 1500 anos a frente no futuro e nenhum dos dois era particularmente bom em nada. Estavam sobrevivendo de subempregos da época (que consistiam em coisas como limpeza mental, conserto molecular de coisas e etc.)

– E você acha que eu não sei disso? Eu lembro todo dia quando olho pela janela! – O rancor na voz dele não era algo de se esperar de um garoto de 15 anos.

Sem mais o que argumentar o irmão mais velho ligou a HoloTV e imagens surgiram dentro do quarto, era um documentário sobre artefatos antigos, nada muito interessante. Quanto mais no futuro adentravam mais parecia que eles eram obcecados pelo passado. Mas algo chamou a atenção deles: era a história de dois relógios antigos, um dourado e o outro prata, que haviam desaparecido há muito tempo, supostamente roubados.

– Aumenta o volume! – gritou o mais novo.

A história contava que os relógios tinham o poder de distorcer o tempo, o dourado levaria para o passado e o prata, para o futuro.

Os irmãos se olharam estupefatos e correram até a caixa onde deixavam o relógio prateado com pedrinhas encravadas. Para quem olhasse não era nada além de um relógio de bolso comum. Para eles, uma maldição.

– Um relógio prata que leva para o futuro? Não pode ser coincidência! –os dois se olharam com um relance de esperança pela primeira vez em três meses. Voltaram até a sala para ver o que mais diziam do relógio.

“Atualmente o relógio dourado encontra-se no museu de história antiga, assim como uma réplica do que seria o relógio irmão…”

– É isso, nós temos que roubar o relógio dourado, e aí poderemos voltar para o nosso tempo…

– Roubar? E como você pretende roubar um museu de 1500 anos no futuro? Nós nem sabemos que tipo de segurança eles têm. Não é mais fácil falarmos que esse relógio nos trouxe pra cá…

– Você é retardado? E você acha que se acreditarem em nós, SE acreditarem, veja bem, eles vão simplesmente dizer: claro, podem usar? Lógico que não, vamos virar ratos de laboratório e não vamos passar mais nenhum dia nesse inferno!

O mais novo parecia convencido e nada mais foi dito sobre o assunto.

– Então, como vamos fazer?

– Vamos pensar em um plano.

 

Continua…

A Sacerdotisa

“É de conhecimento popular que quando a lua aparece vermelha é porque sangue inocente foi derramado…”

 

Foi em uma noite como essa que Miko saiu de casa vestindo roupas que pra ela eram consideradas completamente diferentes (e desconfortáveis). De calça jeans, uma blusa de manga longe e all-star ela deixou o templo xintô que morava no Japão com a missão de acalmar um espírito.

Pegou um ônibus que levava ao subúrbio da cidade até uma casinha de estilo antigo feita de tijolos e madeira, era noite e a única iluminação vinha dos postes de luz e de dentro da casa. Ela tocou a campainha e o portão se abriu automaticamente para que entrasse.

– Kinomoto-san? Está aí? Estou entrando.

Retirou os sapatos antes de entrar como era costume e entrou lentamente procurando sinais do dono da casa. Uma luz vinha de um corredor assim como o barulho de um choro baixo, o único som que vinha daquela casa. Miko avançou devagar até chegar à porta de madeira e a abriu. Lá dentro estava um senhor de cabelos grisalhos e óculos de meia-lua, sentado em uma caminha colocada no canto do quarto.

– Kinomoto-san, estou aqui como pediu. – Miko se aproximou e ajoelhou-se em frente ao velhinho olhando para sua face encharcada.

– Oh, Miko, minha querida, me desculpe, eu ouvi você chegar mas eu não consegui sair do quarto para te esperar, aquele barulho, aquela voz que vem lá de cima não pode ser minha querida Sakura, ela morreu, você viu ela morta, e agora fico ouvindo ela falar, Miko, faça ela descansar!

Ela assentiu com a cabeça e se pôs de pé sem dizer nada, saiu do quarto e andou pelo corredor até a escadaria que ficava próxima a entrada da casa. Lá de cima só a luz vermelha da lua era visível. Puxou seu rosário de pérolas da bolsa que carregava e orou por alguns segundos para o rosário fazendo-o brilhar. Subiu as escadas.

O Sr. Kinomoto esperava aflito no quarto enquanto ouvia o ranger das escadas a medida que Miko ia subindo. O silêncio de repente tomou a casa e o senhor se agarrou a estátua de Buda que ficava na mesinha ao lado. Rezou. Barulhos começaram a vir lá de cima, estrondos e portas batendo, um grito agudo foi emitido e vozes, uma era de Miko, a outra a da coisa. O barulho continuou e desceu as escadas saindo pela porta. Silêncio. Outro som de alguma coisa descendo as escadas e vindo em direção ao quarto, se aproximava com rapidez fazendo-o apertar o Buda com mais força a medida que chegava mais perto, até que a porta se abriu.

– Miko-sama, você quase me matou se susto! Diga-me, conseguiu se livrar da coisa?

A sacerdotisa olhava chateada para o velho enquanto guardava o colar na bolsinha, hesitou por um instante, mas por fim guardou enquanto um sorriso se esboçava em seus lábios.

– Sim, não se preocupe a coisa que se passava por sua linda Sakura já não está mais aqui, você agora pode dormir sossegado.

– Muito obrigado Miko-sama, muito obrigado.

A garota assentiu com a cabeça e fechou a porta. Suspirou olhando para a madeira e andou até a saída. Colocou seus sapatos novamente e abriu a porta da entrada da casa que dava para um jardim. No canto do jardim havia um túmulo.

– Não se preocupe, tudo vai ficar bem agora… – No túmulo podia se ler gravado na pedra “Kinomoto-san, pai e marido carinhoso…”

O Aprendiz e o Sapo

Todo mago precisa de um aprendiz. E todo aprendiz precisa de um mago. Essa história é sobre um aprendiz que acabou por precisar de um sapo.

No alto de uma colina verde, de grama alta, fica um chalé. Não um chalé qualquer, mas o chalé do Mago. Da chaminé de tijolos vermelhos não era fumaça preta que saía, mas fumaça azul, amarela e às vezes vermelha. Fumaça que tomava forma – de cavalo – ou até mesmo de um pássaro, que voava livre pelos céus uma vez liberto de sua gaiola de caldeirão.

Dentro do chalé estava o Aprendiz, de tamanho diminuto e olhos curiosos. Tudo lhe chamava a atenção: a fumaça viva, os livros coloridos, a varinha reluzente em cima da mesa que era deixada ali com um aviso de voz severa “Não encoste na varinha e nunca deixe nada encostar nela, principalmente um sapo”.

O porquê daquilo ele não sabia, mas a marca do castigo da última vez que tocou na varinha ainda ardia de vez em quando, desde então, nunca mais desobedeceu.

Foi em uma tarde tediosa que o Aprendiz recebeu uma tarefa tediosa com um desfecho nada tedioso. A voz severa lambia os dedos e passava página após página até achar o que queria. Olhou uma lista e olhou para suas prateleiras. Olhou de novo para a lista. Olhou de novo para a prateleira. Por fim, olhou para o Aprendiz; “Busque água do lago, água fresca, nada de lodo, e nada de sapos!” – disse ele com a voz severa. E o Aprendiz assentindo com a cabeça calçou sua bota, prendeu as mangas e saiu com um balde em mãos.

O lago não era longe do chalé. Era pequeno mas profundo e ali muitos animais vinham para beber de sua água limpa. O Aprendiz aproximou-se e ajoelhou olhando seu reflexo na água. Sorriu para si mesmo antes de seu reflexo se distorcer com o movimento repentino na água. Olhou e não viu nada menos do que um sapo. Não era um sapo qualquer, era um sapo verde, sem manchas e que usava uma coroa dourada e minúscula acima do olho que não caía sabe-se lá como.

Curioso como era, o Aprendiz olhou o sapo, olhou a coroa e chegou mais perto levando o dedo até o sapo, que coaxou, fazendo o menino quase cair dentro da água, se segurando apenas em um ramo de folha que crescia às margens do lago. O sapo coroado olhou o menino como se o reconhecesse, até mesmo o entendesse. Olhou para o balde e saltou da folha em que estava direto dentro do recipiente vazio.

-Ei, não pode entrar aí, nada de sapos! – falou o menino enfiando a cabeça dentro do balde. O sapo coaxou de novo e mexeu a cabeça apontando a coroa como se dissesse “Não sou um sapo comum, sou um sapo nobre”.

-Não me importa se você tem uma coroa, se o Mago te ver aqui, eu é que vou ter problemas!

O sapo, fazendo cara de zangado, se curvou e pulou direto na cara do menino.

-Opa – gritou de susto levando as mãos de encontro ao sapo como se fosse lhe dar um tapa, mas ao invés disso o sapo ficou parado flutuando no ar, preso dentro de uma bolha transparente, girando em todas as direções e indo parar de cabeça pra baixo com uma cara incrédula.

-Que belo encrenqueiro que você é. Pois bem, vou te levar, mas sabe por quê? Para te cozinhar no caldeirão e ver que cor de fumaça você dá.

O Aprendiz ignorou os coaxados de revolta e encheu o balde com água. Pegou a bolha com a mão livre e subiu a colina de volta ao chalé.

O Mago não estava ali na hora e o Aprendiz pôde suspirar aliviado, pelo menos por agora. Precisava cozinhar ele rápido antes que seu mestre retornasse, ou teria outra marca ardida no bumbum.

Colocou a bolha em cima da mesa perto da varinha e foi até o caldeirão que borbulhava com um resíduo nojento, como lodo. Jogou a água na mistura e de repente a mistura se transformou em um caldo dourado e bonito, puro, brilhante como se fosse ouro líquido.

-Certo Alteza Sapal, está na hora de um banh…

Distraído com o caldeirão ele não percebeu o sapo usando sua coroa pontuda para explodir a bolha que o mantinha preso. Uma vez livre pulou sorrateiramente até a varinha na mesa, encostando-se a ela com sua pata gosmenta. E antes que o Aprendiz pudesse perceber, um brilho prateado saiu da varinha e o sapo se transformou no Mago que o olhava severo por trás dos óculos.

-Eu disse: nada de sapos. E agora você vai saber o por que…

O menino cabisbaixo foi para seu canto esperar o porquê de não poder trazer um sapo.